O sinuoso caminho para a desinflação doméstica

No meu último texto, no mês de outubro, procurei discorrer sobre a inflação no cenário global, mostrando elementos centrais que vem provocando desequilíbrios entre a oferta e demanda de uma forma mais abrangente, bem como os desafios para desinflacionar a economia no âmbito global. Olhando agora sob uma perspectiva local, inicio retornando ao final de 2021, quando os efeitos mais perversos da pandemia sobre o ambiente econômico estavam em declínio e o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) registrou 10,1% no acumulado em 12 meses. Àquela altura, dada a expectativa de normalização das cadeias produtivas e do comportamento dos consumidores, a premissa preponderante no mercado era de descompressão importante nos preços medidos pelo IPCA, que é a medida de inflação oficial do país e guia a condução de política monetária por parte do Banco Central. As nossas projeções (que não se distanciavam muito das de mercado no início de 2022) eram de aproximadamente 5,0% e 3,4% para 2022 e 2023, respectivamente.

No entanto, o advento da guerra no continente europeu entre Rússia e Ucrânia a partir de fevereiro adicionou novos efeitos adversos sobre as cadeias produtivas, afetando diretamente diversas economias do globo. No Brasil, em que pese a distância geográfica do conflito, os impactos inflacionários apareceram pelos canais dos insumos, destacadamente preços de petróleo e fertilizantes, gerando reflexos importantes em diversos segmentos produtivos domésticos. Diante desse novo quadro, a inflação brasileira se manteve em 2 dígitos ao longo de todo o primeiro semestre, alcançando o pico em abril de 2022, quando registrou 12,1% no acumulado em 12 meses. Essa alteração na conjuntura fez com que as perspectivas fossem alteradas, aproximando a projeção para 2022 novamente do patamar de 2 dígitos (no início de junho, o cenário anual contemplava alta próxima a 9,0%).

Na sequência, diante das medidas tributárias que reduziriam os preços de combustíveis, energia elétrica e telecomunicações, o processo de deterioração das projeções do IPCA foi revertido, com o segundo semestre do ano representando um horizonte de descompressão importante dos preços internos.

Atualmente, passados mais de oito meses de guerra (que elevaram os preços no primeiro semestre) e a efetivação das medidas tributárias (que reduziram os preços no terceiro trimestre), a inflação acumulada pelo IPCA em 12 meses até setembro registra alta 7,2%, a menor taxa desde abril de 2021 (6,8%). Em tempo, cabe o destaque de que as medidas governamentais contribuíram decisivamente para as três deflações consecutivas observadas no IPCA entre julho e setembro, algo que não acontecia desde o terceiro trimestre de 1998.

Para o restante do ano, apesar do fim dos efeitos diretos das medidas tributárias sobre as passagens mensais do IPCA (que voltarão ao campo positivo a partir da leitura de outubro), a benesse trazida pelas desonerações continuará fazendo efeito sobre a inflação acumulada em 12 meses – esta deve manter a trajetória cadente nos últimos meses do ano, alcançando patamar inferior a 6,0% ao final de 2022. Cabe destacar que este movimento de descompressão não será suficiente para colocar o IPCA na região compatível com a meta de inflação estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que é de 3,5% com tolerância de 1,5% para cima ou para baixo, o que coloca o teto da meta para o ano em 5,0%.

A esta altura, uma pergunta frequente dos participantes do mercado é se essa descompressão observada nos preços ao consumidor a partir de julho de 2022 deverá continuar ou se o efeito redutor das medidas tributárias ficará para trás, e o IPCA acumulado em 12 meses voltará a subir.

Olhando para o horizonte mais longo e atualizando as expectativas em função do conjunto de informações disponíveis até o momento, é notório o impacto da redução da inflação corrente e seus efeitos sobre os próximos períodos, tanto em virtude da menor inércia quanto pela indexação de uma série de itens que levam consigo o reajuste pré-determinado do resultado do IPCA fechado do ano anterior. Desta forma, apesar do fim da temporada de deflações nas passagens mensais, o resultado de 2022 traz consigo uma “herança benigna” para a inflação futura, o que contribui para uma dinâmica inflacionária mais construtiva nos períodos a frente.

No entanto, entendo que essa dinâmica mais otimista deve ser encarada com cautela. Isso porque, por ora, a recomposição esperada de preços administrados e a trajetória estimada para preços livres não sinalizam uma convergência célere do IPCA em direção à meta. Nesse sentido, mesmo quando olhamos para um horizonte um pouco mais longo, compatível com o observado pelo Banco Central na condução da política monetária (até 2024), a trajetória estimada se mostra bastante resiliente, o que deve manter o sinal de alerta da autoridade monetária em relação ao patamar de juros necessário para ancorar expectativas inflacionárias e conduzir a inflação para o centro da meta no seu horizonte relevante.

De maneira detalhada, quando avalio os principais grupos do IPCA, alguns pontos chamam atenção. Iniciando por preços administrados, após quedas expressivas em virtude das medidas tributárias que levarão o indicador a patamar negativo ao redor de 4,0% ao final de 2022, a expectativa de recomposição destes preços em 2023 é bastante disseminada, com destaque para preços relacionados a energia elétrica, transportes urbanos, produtos farmacêuticos e planos de saúde. Nesse sentido, projetamos preços administrados ao redor de 5,0% para 2023, o que representa contribuição de aproximadamente 1,2p.p. para o IPCA do próximo ano.

Passando para preços livres, que podem ser agregados em alimentação no domicílio, preços de serviços e bens industriais, após uma inflação projetada de 9,3% em 2022, esperamos variação equivalente a 4,7% em 2023, o que representa uma contribuição de 3,5p.p. para o IPCA cheio. Sob essa perspectiva, é importante frisar que a resiliência da atividade econômica presente em nosso cenário (projetamos alta do PIB de 3,0% este ano e 1,0% em 2023) deve atuar como fator limitador a uma descompressão mais forte da inflação de preços livres, notadamente àquela relacionada a serviços.

Desta maneira, a composição do IPCA, formada por preços administrados e livres, sinalizam uma variação de 4,7% no ano de 2023, taxa equivalente ao teto da meta estabelecida pelo CMN. A meta de inflação para 2023 é de 3,2% e o teto da meta é de 4,7%.

Dito de outra forma, apesar de conter um movimento robusto de desinflação dos preços no decorrer do próximo ano, nossas projeções indicam um IPCA no limite da banda estabelecida pelo CMN, o que reforça o pressuposto de que o Banco Central não possui graus de liberdade para acomodar eventuais choques que podem ocorrer nos trimestres à frente.

Além disso, pensando em nosso conjunto de premissas e potenciais desvios para as projeções, os movimentos mais prováveis para 2023 são altistas. Isso porque não consideramos em nossas hipóteses o retorno dos tributos federais sobre preços de combustíveis, o que adicionaria cerca de 0,6p.p. em nossas projeções anuais do IPCA. Além disso, as incertezas relacionadas ao arcabouço fiscal vão na mesma direção, impactando os preços ao consumidor via elevação do câmbio e prêmios de risco.

Para equilibrar o balanço de riscos, pondero que uma eventualmente forte recessão no ambiente global pode alterar o curso normal do nosso processo de desinflação, trazendo menor pressão para as curvas de commodities, notadamente petróleo, minério de ferro e alimentos. Embora não seja o cenário mais provável, a ocorrência desse evento pode contribuir para um ciclo inflacionário menos desafiador, o que elevaria a possibilidade de uma convergência mais tempestiva para a meta de inflação nos próximos anos – a despeito de seu potencial impacto negativo sobre a taxa de câmbio doméstica.

Passando para 2024, embora a trajetória estimada indique uma aproximação da meta de 3,0% estabelecida pelo CMN (projetamos IPCA de 3,5%), entendo que o desafio deste processo de descompressão também não deve ser subavaliado. Isso porque, assim como em 2023, a resiliência de preços livres deve se apresentar como um fator limitador para a redução mais acelerada dos preços internos. Quando olhamos de forma desagregada, nossa projeção para inflação de serviços (que é a que possui o maior peso dentro da composição de preços livres e a que apresenta maior sensibilidade em relação à condução da política monetária) é de 4,2%, valor inferior aos 8,4% e 5,5% esperados para 2022 e 2023, respectivamente, mas significativamente abaixo da média histórica do componente, que é de 6,1%. Estes elementos reforçam que esperar por uma descompressão de serviços muito além da que projetamos é contar com um evento poucas vezes observado em nossa história.

Nesse sentido, em que pese o processo de desinflação da economia brasileira se mostrar robusto, entendo que a velocidade de convergência e os riscos presentes no caminho são fatores que limitam uma avalição mais otimista em relação ao cumprimento das metas nos próximos anos.

Em resumo, enxergo que a espiral deflacionária observada nas últimas passagens do IPCA deve sim contribuir para um ambiente menos pressionado no horizonte à frente, mas que o processo de desaceleração dos preços para patamar compatível com o centro da meta de inflação deve ser mais longo, superior até ao horizonte relevante para a política monetária, que contempla os anos de 2023 e 2024. Para terminar, reforço que boa parte dessas expectativas dependem fundamentalmente de um ambiente fiscal controlado, que traga segurança aos mercados e credibilidade para o país. Somente assim conseguiremos construir um ambiente econômico seguro e capaz de promover crescimento sustentável, sem pressões inflacionárias.

Marcelo Rebelo
Economista-Chefe do BB

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